Por RUI MOREIRAPLENOS PODERES
"O Público" - Quinta-feira, 05 de Agosto de 2004
Esta é uma sociedade estranha, onde a inveja predomina, a desconfiança prolifera e os valores se invertem. Ninguém se preocupa (e alguns aplaudem) se o clube do bairro contratar um jogador (para a sua equipa de uma modalidade dita amadora...) que ganhe mais do que o presidente da Câmara, mesmo que seja este a aprovar o subsídio que viabiliza o clube. Poucos ousam reclamar contra essa imoralidade.
O tabu sobre as remunerações dos políticos, cada vez mais distantes das que se praticam no sector privado, agrava as indisponibilidades e acentua o clima de permissividade. A alguém "se sacrifica tanto e por tão pouco", prescinde de um lugar bem pago, do conforto do fim-de-semana e da privacidade, tolera-se que opte por "corriger sa fortune".
Este cenário perverso propicia a segmentação dos políticos em três classes distintas:
- Os tradicionais, que abraçam a política por convicção e motivação ética, cívica e ideológica. São da escola genuína, que aceita a alternância e aprecia o debate e o combate, e tem perdido qualidade. Os seus novos protagonistas, que treparam pelos aparelhos partidários são, em geral, carreiristas e superficiais.
- Os temporários, que usam a política como trampolim. Quando se sacrificam a servir a causa pública, interpretam-no como serviço cívico obrigatório, tirocínio que dá acesso ao bem-estar. Acabam nos "jobs", na presidência política de alguma empresa de capitais públicos, onde infernizam os CEO e usurpam competências. Se o poder os voltar a chamar, interrompem o conforto e negoceiam o futuro.
- Os mutantes, que fazem incursões na política e que dela se servem por mera conveniência, predadores que contribuem para o descrédito da política e para a decadência das instituições. Fingem aceitar o desafio quando já acertaram previamente políticas e contrapartidas com os seus fregueses.
São estes últimos, autores e actores em negociatas incompreensíveis, que subvertem o interesse público através de um sistema, instalado na penumbra, de dever e haver por acerto directo.
Nada se faz para controlar estes conflitos de interesse, os mais perigosos e intangíveis, em contradição com o empobrecimento do parlamento pelo regime de incompatibilidades visíveis. Aí, os que restam (e a isso se prestam) estão condenados a um quase exclusivo, em que o insuficiente vencimento contrasta com as injustas e precoces reformas, que custam milhões ao erário público e inibem a renovação.
Cresce a suspeita, reina o boato, não faltam sintomas. Ninguém contabiliza o custo real do polvo, do jogo de compensações, da impunidade e dos círculos viciosos. Fez-se algo para regulamentar o financiamento partidário, mas é inadiável que os bons políticos que restam se empenhem num consenso que rompa com esta hipocrisia.
A dignificação da causa pública exige que a remuneração dos titulares dos cargos políticos seja compatível com o cargo, a sua exposição e os atributos de competência. O país pode pagar mais pelo trigo se arrancar o joio, condição prévia e urgente para renovar, requalificar e moralizar todo o sistema político.
Economista, presidente da Associação Comercial do Porto
Informação da responsabilidade do Secretariado da Concelhia do PS de Tomar